Estava vindo para casa. Era à tardinha, final de dezembro, ameaçava chover. Vinha muito distraída, pensando em nada. Foi assim que o encontrei.
Foi numa ruazinha quase sem movimento, já muito próxima à minha casa. Primeiro, ouvi um miadinho. Miadinho de gato pequeno, filhote. Olhei e vi um bichinho listrado e minúsculo, muito magro e que tentava, com dificuldade, subir o pequeno degrau de um jardim. Arrastava uma das patinhas dianteiras, que no momento pensei estar machucada, por isso a dificuldade em transpor aquele pequeno obstáculo. Da janela, a dona da casa o enxotava aos berros.
Quis levá-lo comigo, cuidar dele, dar-lhe de comer. Mas pensei em seguida no meu gato adulto, é provável que ele não fosse gostar da idéia de outro habitante felino. Passei direto. Fui para casa com o coração na mão. A imagem do gatinho não me saía da cabeça. Começou a chover. “Ele não vai muito longe com a patinha daquele jeito, vai se molhar todo e vai morrer de frio... Talvez eu consiga arrumar alguém que possa ficar com ele... e se não arrumar?... Não posso, já tenho um...”
Esses pensamentos passaram por minha mente em pouquíssimo tempo. Por um lado, a memória invocava o sofrimento daquela pobre criaturinha; por outro, o receio de não ter o que fazer depois com o gato...
Peguei o guarda-chuva e voltei. Demorei um pouco para encontrá-lo sob umas tábuas de construção, em um monte de areia, já meio molhado da chuva. Era um bichinho assustadiço e muito pequeno. Estava todo esfolado e, alem da mão que não se mexia, tinha o rabo quebrado. Deve ter sido vítima de muita crueldade.
Trouxe-o para casa. Estava semi-morto de fome e sede. Ele provavelmente não sobreviveria até o dia seguinte.

Mas, se meu coração descansou por um lado (eu provavelmente nunca mais dormiria em paz se não o tivesse trazido), por outro foi o início de um período de extremo estresse mental para mim. Bem, aí está. O gatinho está seguro, seco, alimentado e hidratado. Mas, como eu temia, o Nanquim desencadeou um ódio mortal contra o pequenino, logo à primeira vista. Não suportava sua presença.
Muito angustiada, na mesma noite e durante aquela semana procurei, entre os conhecidos e também por via
internet, alguém que pudesse e quisesse adotá-lo. Mas quando alguém se interessava, era só até saber que o gatinho era aleijado, pois, como vim a saber depois que o recolhi, ele não tem sensibilidade na pata dianteira, por isso a arrasta. É provável que tenha se machucado e danificado o tendão. A pata fica o tempo todo dobrada e ele se apóia nas costas da mão para andar. Apesar disso, brinca como qualquer gatinho jovem e está se tornando um gato lindo; depois que passou o medo inicial, se mostrou muito carinhoso e de bom caráter. Hoje ele está lindo, tem o pelo maravilhoso e uma alma muito boa!
Ainda bem que no fim tudo deu certo. Mas, durante aqueles dias, como sofri. O gatinho precisava ficar o tempo todo trancado na minha pequena lavanderia, para sua própria segurança. Acreditei que o Nanquim nunca o aceitaria, era o próprio Caim. Tinha muito ciúmes do pequenino e passou a ter mágoas de mim, era só o listradinho aparecer para o Nanquim me desprezar, não queria nem ficar perto.
Tenho muitos conhecidos veganos. Não comem carne nem consomem ou usam qualquer produto de origem animal. Dizem se preocupar com os animais e lutar pela sua libertação, proteção e bem estar. Bem, recorri a alguns deles para que me ajudassem a encontrar um lar para a pobre criaturinha que eu trouxe para casa. Claro, sei que a maioria das pessoas não tem condições de ficar com um bichinho desses, até porque normalmente quem gosta de gatos já tem a casa cheia deles. Mas pensei que se houvesse um apoio dessas pessoas, no sentido de divulgação do problema, acabaríamos encontrando alguém de alma boa e em condições de adotá-lo. E fiquei muito surpresa e decepcionada com a recepção de meus pedidos de ajuda, pois esses mesmas pessoas que erguem a bandeira e vestem o rótulo de preocupados com o bem estar e amantes dos animais, não foram capazes sequer de levar a sério meu problema! Nenhum deles, nenhum! Me olhavam com indiferença ou até com gozação. Fiquei muito decepcionada. Lembro-me de uma dessas pessoas que fez uma baita brincadeira de mau-gosto: “Pode me dar, meu pitt-bull vai adorar brincar com ele!” (??!!). Não achei graça. Meu problema era sério. E foi essa parte da história que me levou a reflexões sobre a natureza das pessoas. De como as pessoas têm uma necessidade de se enquadrar em um grupo social, uma ideologia para ditar regras, mesmo que não acreditem realmente de coração naquilo que dizem seguir. É mais fácil dizer “eu pertenço a tal grupo e sigo determinada ideologia”, do que raciocinar por conta própria formando um pensamento coerente e individual. Pensar é difícil, se conhecer é difícil, mais fácil é ter algumas regrinhas a seguir, mesmo que nunca se pense realmente sobre o assunto...
Engraçado é que as pessoas não-veganas com quem conversei, as que nunca se disseram amantes de animais, as que adoram um churrasquinho, foram as que se sensibilizaram mais e me deram maior apoio. Foram as que, depois de um tempo, mostraram preocupação e interesse em saber como estava o gatinho e o que havia sido feito dele. Os meus amigos veganos nunca mais tocaram no assunto, e sei que nem por um momento procuraram me ajudar (ou melhor, ajudar o bichinho) divulgando a história entre seus conhecidos. Confesso que fiquei magoada com isso.
Ao mesmo tempo, como curiosa que sou sobre o comportamento humano, achei interessante observar suas reações, e sempre que encontrava algum conhecido vegano, relatava a história, agora mais para ver como seria sua reação do que por esperança de obter ajuda. E as reações foram sempre de indiferença.
Mas deixarei essas ponderações, sobre comportamento e natureza humana, para o
próximo texto. Quero antes terminar este, contando pra vocês o que por fim se sucedeu ao bichano, pois acredito que quem tenha chegado até aqui em meu relato, certamente esteja curioso em saber o fim da história. Eu disse que o final era feliz, e foi. Bem, pelo menos até agora, pois estando o gatinho ainda vivo, certamente não posso dizer que chegou ao fim...
Ele está comigo até hoje, cresceu e ficou lindo, é muito carinhoso e um dos gatos de alminha mais boa que já conheci. Quanto ao Nanquim, bem... depois de uns dois meses de muito estresse e sofrimento, acabou por se acostumar e até começou a ver nele um amigo para brincadeiras. Mas até hoje não posso sair e deixá-los juntos, só brincam sob as minhas vistas, pois o Nanquim às vezes apela e ainda tenta machucá-lo. Quando não estou em casa ele volta pra lavanderia, mas ainda assim acredito que seja melhor pra ele do que se houvesse ficado na rua, onde teria morrido vagarosamente e com muito sofrimento. No fim, achei bom que tenha ficado em minha casa, pois, além de ter adquirido grande amor por ele, sei que a maioria das pessoas não teria os cuidados e atenção necessários com a patinha aleijada, que requer, para sempre, cuidados especiais.
Espero ainda que um dia se acostumem completamente, e que o Nanquim aceite o Cisco (pois é assim que se chama o listradinho), de todo o coração, para que possam realmente se fazer companhia...
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